"As pessoas", já disse alguém, "dividem-se em
dois grupos: o dos que dividem as
pessoas em dois grupos e o dos
que não o fazem -eu, evidentemente, pertenço ao segundo grupo". Quanto a mim, não apenas
assino embaixo, como também
classifico a intelectualidade em
duas metades desiguais: a dos tecnófilos e a dos tecnófobos. Hoje
em dia esta parece ser substancialmente maior do que aquela.
O tecnófobo, além de ter relutado anos antes de adquirir seu primeiro computador, ainda o utiliza a contragosto e, se pudesse, retornaria logo à pena de ganso, ao tinteiro e a sua caligrafia de médico. Ele ou ela não simpatiza com a televisão, desdenha em especial a MTVprefere assistir a seus filmes, sempre de arte e geralmente europeus ou iranianos, no cinema.
Nenhum tecnófobo faz "down- load" de música pela internet, tampouco a ouve num leitor de MP3 e, enquanto os jovens lidam mal com um controle remoto, os mais idosos nem sequer tiraram carteira de motorista.
O tecnófilo, por sua vez, bate fotos digitais que envia aos amigos anexadas a seus e-mails, já reassistiu às séries completas de "Duro de Matar" e "Máquina Mortífera" em DVD, sabe que Carrie Bradshaw é a protagonista de "Sex and the City", que Phoebe, Rachel e Monica são personagens de "Friends" e deixa alegremente de lado a discussão sobre seu último artigo para discorrer sobre as vantagens ou desvantagens relativas do PC ou do Macintosh.
Obviamente estou me referindo a tipos ideais. No mundo real, tudo isso se apresenta mesclado e como tendências ou inclinações de cada qual. Quanto maior, porém, o número de intelectuais examinados, mais fácil é dividir o grosso deles nas duas categorias acima. O interessante é que pertencer a uma ou outra decorre menos de escolhas conscientes que de algo profundo e imutável: o temperamento.
Sabe-se que há indícios que permitem deduzir certas características. Um dos exemplos mais conhecidos é o seguinte: quanto mais bela uma mulher, maior a probabilidade de que seu marido seja rico e, quanto mais rico um homem,tão mais provável que sua mulher seja bonita. De forma semelhante, deve haver alguma espécie de correlação entre, digamos, o amor ou desamor pelo computador e o texto que seu usuário produz.
Quem tenha aderido entusiasticamente ao computador e se conectado logo que possível à web, quem use o Google várias vezes por dia e recorra ao IMDb (Internet Movie Database) para tirar suas dúvidas cinematográficas é alguém mais propenso a apreciar a cultura de massas e menos propenso seja a choramingar por causa de um suposto emburrecimento de seus concidadãos, seja a atribuí-lo aos meios de comunicação. Por outro lado, quem quer que tenha se agarrado enquanto pôde à sua máquina de escrever quase certamente se revelará um pessimista que, a seu redor, nada vê, exceto uma irreversível decadência manipulada pela indústria da cultura.
Se os tecnófilos gravitam em torno do centro político sem se afastarem muito rumo à esquerda ou direita, os tecnófobos mais renhidos habitam os extremos destas. Na hora de falar sobre televisão ou Hollywood, as opiniões dos neonazistas e dos antiglobalistas praticamente se confundem. Nenhum deles acredita que o que está sendo exibido é aquilo que o público quer de fato ver ou caso, por uma infelicidade, corresponda ao gosto da platéia em questão, então há algo de muito errado acontecendo, pois não é assim que as coisas deveriam ser.
O tecnófobo, além de ter relutado anos antes de adquirir seu primeiro computador, ainda o utiliza a contragosto e, se pudesse, retornaria logo à pena de ganso, ao tinteiro e a sua caligrafia de médico. Ele ou ela não simpatiza com a televisão, desdenha em especial a MTVprefere assistir a seus filmes, sempre de arte e geralmente europeus ou iranianos, no cinema.
Nenhum tecnófobo faz "down- load" de música pela internet, tampouco a ouve num leitor de MP3 e, enquanto os jovens lidam mal com um controle remoto, os mais idosos nem sequer tiraram carteira de motorista.
O tecnófilo, por sua vez, bate fotos digitais que envia aos amigos anexadas a seus e-mails, já reassistiu às séries completas de "Duro de Matar" e "Máquina Mortífera" em DVD, sabe que Carrie Bradshaw é a protagonista de "Sex and the City", que Phoebe, Rachel e Monica são personagens de "Friends" e deixa alegremente de lado a discussão sobre seu último artigo para discorrer sobre as vantagens ou desvantagens relativas do PC ou do Macintosh.
Obviamente estou me referindo a tipos ideais. No mundo real, tudo isso se apresenta mesclado e como tendências ou inclinações de cada qual. Quanto maior, porém, o número de intelectuais examinados, mais fácil é dividir o grosso deles nas duas categorias acima. O interessante é que pertencer a uma ou outra decorre menos de escolhas conscientes que de algo profundo e imutável: o temperamento.
Sabe-se que há indícios que permitem deduzir certas características. Um dos exemplos mais conhecidos é o seguinte: quanto mais bela uma mulher, maior a probabilidade de que seu marido seja rico e, quanto mais rico um homem,tão mais provável que sua mulher seja bonita. De forma semelhante, deve haver alguma espécie de correlação entre, digamos, o amor ou desamor pelo computador e o texto que seu usuário produz.
Quem tenha aderido entusiasticamente ao computador e se conectado logo que possível à web, quem use o Google várias vezes por dia e recorra ao IMDb (Internet Movie Database) para tirar suas dúvidas cinematográficas é alguém mais propenso a apreciar a cultura de massas e menos propenso seja a choramingar por causa de um suposto emburrecimento de seus concidadãos, seja a atribuí-lo aos meios de comunicação. Por outro lado, quem quer que tenha se agarrado enquanto pôde à sua máquina de escrever quase certamente se revelará um pessimista que, a seu redor, nada vê, exceto uma irreversível decadência manipulada pela indústria da cultura.
Se os tecnófilos gravitam em torno do centro político sem se afastarem muito rumo à esquerda ou direita, os tecnófobos mais renhidos habitam os extremos destas. Na hora de falar sobre televisão ou Hollywood, as opiniões dos neonazistas e dos antiglobalistas praticamente se confundem. Nenhum deles acredita que o que está sendo exibido é aquilo que o público quer de fato ver ou caso, por uma infelicidade, corresponda ao gosto da platéia em questão, então há algo de muito errado acontecendo, pois não é assim que as coisas deveriam ser.
Os tecnófobos paradigmáticos
apareceram pouco depois da invenção da máquina a vapor, no
começo da Revolução Industrial.
Inspirados pela figura talvez mítica de um trabalhador revoltado,
Ned Ludd, eles se autodenominavam Ludditas e eram artesãos
que, vendo seus ofícios e modo de
vida ameaçados pelas inovações
tecnológicas, dedicaram-se a destruir máquinas têxteis e agrícolas
na Inglaterra da segunda década
do século 19.
Embora o movimento acabasse apropriado pela esquerda, o impulso que o movia não se diferenciava daquele que deu origem ao conservadorismo romântico, uma vez que ambos se apegavam a um passado idílico e, para todos os efeitos, condenado.
Os pais da esquerda contemporânea, de Marx e Engels a Lênin e Trótski, pendiam para a tecnofilia e, quando chegavam ao poder, empenhavam-se em construir indústrias pesadas e poluentes. Acontece que os netos, desde os que se insurgem contra a rede McDonald's até os que rejeitam os alimentos geneticamente modificados chamando-os de "Frankenfood" (aliás, a autora de "Frankenstein", Mary Shelley, e seu marido poeta apoiaram os Ludditas originais), identificam-se de preferência com os avós. George W. Bush e os verdes europeus podem se detestar, mas, no que diz respeito à clonagem de seres humanos, não há grande discordância entre eles.
Nem é acidental, portanto, que os intelectuais em sua maioria acompanhem o surgimento ininterrupto de novos "hardwares" e "softwares", "gadgets", aparelhos etc. com desconfiança.
Eles que, durante os anos de escola, tiravam notas melhores em português do que em matemática, chegados à idade adulta se consideram os guardiães do legado cultural e não adianta dizer-lhes, por exemplo, que toda a música erudita ocidental pode agora ser adquirida a preços cada vez mais acessíveis, porque, se tal milagre render algum dividendo econômico, ele se torna de certo modo pecaminoso.
Se defender uma escala antimercantil de valores lisonjeia o ego de um intelectual, tal ação o aparta de um público crescente, acarretando uma perda de influência pela qual ele só pode culpar a si mesmo.
Texto Folha de São Paulo
Embora o movimento acabasse apropriado pela esquerda, o impulso que o movia não se diferenciava daquele que deu origem ao conservadorismo romântico, uma vez que ambos se apegavam a um passado idílico e, para todos os efeitos, condenado.
Os pais da esquerda contemporânea, de Marx e Engels a Lênin e Trótski, pendiam para a tecnofilia e, quando chegavam ao poder, empenhavam-se em construir indústrias pesadas e poluentes. Acontece que os netos, desde os que se insurgem contra a rede McDonald's até os que rejeitam os alimentos geneticamente modificados chamando-os de "Frankenfood" (aliás, a autora de "Frankenstein", Mary Shelley, e seu marido poeta apoiaram os Ludditas originais), identificam-se de preferência com os avós. George W. Bush e os verdes europeus podem se detestar, mas, no que diz respeito à clonagem de seres humanos, não há grande discordância entre eles.
Nem é acidental, portanto, que os intelectuais em sua maioria acompanhem o surgimento ininterrupto de novos "hardwares" e "softwares", "gadgets", aparelhos etc. com desconfiança.
Eles que, durante os anos de escola, tiravam notas melhores em português do que em matemática, chegados à idade adulta se consideram os guardiães do legado cultural e não adianta dizer-lhes, por exemplo, que toda a música erudita ocidental pode agora ser adquirida a preços cada vez mais acessíveis, porque, se tal milagre render algum dividendo econômico, ele se torna de certo modo pecaminoso.
Se defender uma escala antimercantil de valores lisonjeia o ego de um intelectual, tal ação o aparta de um público crescente, acarretando uma perda de influência pela qual ele só pode culpar a si mesmo.
Texto Folha de São Paulo